sábado, 29 de setembro de 2018

"Cidades de chuva" - (conto, capítulo I)

Das Crônicas "Viagens de um menino voador"

O desaparecimento
Hoje faz um ano que eu desapareci pela primeira vez. Faz exatamente trezentos e sessenta e cinco dias que as pessoas estão desaparecendo repentinamente sem motivo algum.

No início tive muito medo, fiquei confuso e entrei em pânico. Minhas tentativas de falar com outras pessoas sobre tais desaparecimentos me renderam problemas familiares, perdas de emprego e muitas visitas a psicólogos e psiquiatras. Sim, neste mundo em que apenas eu percebo as pessoas desaparecerem, sou tratado como doente mental. Sou apenas mais um  paranoico - ou psicótico - no mundo, e óbvio que ainda me chamam de tantos outros nomes  quando não estou por perto que nem consigo imaginar. O que posso dizer é que todos os desaparecimentos acorrem somente nos dias de chuva.

Ultimamente adotei o silêncio como estilo de vida e observo  calado o desaparecimento das pessoas, que tem sido cada vez mais frequente. Vivo uma rotina angustiante, tentando adivinhar quem será o próximo a desaparecer  e não tenho ninguém para qual posso pedir ajuda. Muitos amigos, e até pessoas da minha família, sumiram de repente e nunca mais voltaram. Estou com medo de desaparecer também com a chuva. A vida  realmente me aprontou uma ironia cruel tornando a chuva, antes minha melhor amiga confidente, em meu real maior pesadelo. Estou em desespero.

Chuva
"Eu te amava chuva, com toda minh'alma. Com você ninguém podia ver que eu estava chorando.
Toda minha dor ficava escondida em suas gotas enquanto eu estava morrendo lentamente.
O medo em meus olhos era o único vestígio do meu sofrimento, então eu os fechava e sorria.
Ninguém além de você, chuva, precisava saber quem realmente era eu."

A chuva
Em pé, com frio, estava esperando a chuva passar para que eu pudesse ir trabalhar. Depois de quase uma hora olhando os carros passarem com suas janelas embaçadas, percebi que algo estranho estava acontecendo lá fora. Algo normal não estava acontecendo lá fora. Sim, este era o problema: nada normal estava acontecendo. Somente o frio, a chuva, os carros com suas janelas embaçadas e as pessoas com seus guarda-chuvas.

Senti um frio na espinha e um desconforto repentino causados pelo vento úmido que escapava pela única porta entreaberta do estabelecimento. Comecei a ter uma sessão ininterrupta de calafrios, que me fez enrolar rapidamente o cachecol em meu pescoço e apertar meus braços em um forte abraço a fim de me proteger do frio e daquela sensação desconfortável que senti. Me aproximei da vidraça, passei a mão no vidro com intuito de secar a umidade e ver o que se passava lá fora. Nada. Realmente eu não vi nada.

Estava eu, um amontoado de carros vazios abandonados pelas ruas e uma quantidade enorme de guarda-chuvas solitários sendo arrastados pela chuva. Andei em direção a saída e pude observar que uma tempestade com nuvens negras estava vindo em minha direção. Desci as escadas que levava para a rua e comecei a andar mais rápido.  Não estava mais preocupado com aquela chuva que molhava minha roupa.

Andei, corri por um tempo. Tudo que encontrei foram lojas, casas e carros inabitados. As pessoas haviam sumido. Eu estava só. Cheguei na avenida principal, corri mais um pouco sem destino algum pela rua deserta até que meus pulmões começaram a arder por falta de ar, resultado da minha vida sedentária. Parei em frente de uma vitrine enorme, me aproximei do vidro para ver se enxergava alguém lá dentro. Ninguém.

Naquele momento reparei que mesmo estando todo encharcado de água da chuva eu não estava sentindo frio. Afastei-me para trás e percebi que não conseguia ver meu próprio reflexo na vidraça. Aterrorizado desequilibrei-me na beira da calçada e caí de costa na rua. Bati a cabeça com força no asfalto, não senti dor alguma. A dor parecia não existir mais nesta minha nova e assustadora experiência. Fiquei por um longo tempo tentando sentir os pingos gelados da chuva em meu rosto, sem sucesso. Notei que o céu estava totalmente negro e aquelas nuvens assustadoras que me perseguiam tinham me encontrado. O silêncio dominava a minha mente.  O som da chuva caindo foi diminuindo, assim como a realidade  que meus olhos eram capazes de ver também estava desaparecendo. Já não existia mais ninguém.

Senti que eu estava desaparecendo também. Só estava restando a chuva fria, os carros cinzas, os prédios vazios, os guarda-chuvas e as nuvens. Nuvens negras, vazias e cruéis.

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