sábado, 16 de junho de 2018

"Um gato preto, falante"

"Mark, o gato preto contador de estórias"

Marcos Eduardo - Mark para os conhecidos - estava prestes a completar dezenove anos. Era um moço daqueles que nunca chegava na hora. Não tinha pressa mas tinha muito apreço, pois nunca esquecia um amigo e nem o seu violão. Meio lobo solitário na sua maneira de ver a vida, e mesmo assim tinha muitos amigos que sabiam esperar a sua hora e acolher o seu eterno "isto não está certo" ou o seu "amanhã, amanhã eu vou". Quem o queria tinha que ir buscar e dar carona de volta, pois ele não gostava de dirigir e tão pouco de ser dirigido. O tempo para ele não tinha conta, era para festejar com canto, viola e amigos ou para viajar para um mato e ficar ouvindo o som dos pássaros, em silêncio. Encontrava-se no auge da sua juventude e com uma vontade de viver que transcendia a explicação racional humana para aquele momento.  Idos tempos, saudades. 

Pensei que, como o Marcos, a vida não tinha pressa para acabar. Ledo engano, mal sabia ele que tudo aquilo estava prestes a mudar drasticamente e para sempre. E eu teria que conviver com a dor da perda  do nosso prometido - nunca acontecido - reencontro. E desde então, deste o seu desaparecimento, carrego aquele vazio no estômago que não é fome e aquela dor no peito que não são borboletas.

Capítulo I
Numa noite chuvosa - destas bem frias e melancólicas, que só o meio urbano tem - alguma coisa bem desagradável estava pra acontecer. Sozinho em seu quarto, temores jamais sentidos antes, tomaram conta do seu corpo e da sua alma. Um suor frio lhe invadiu a espinha, suas mãos e pernas - agora trêmulas - mal conseguiam leva-lo até o banheiro para tentar vomitar aquela dor que o consumia. Sons e luzes - captados normalmente durante o dia - agora distorcidos, reinaram em suas entranhas e o mantiveram acordado a noite toda. Na manhã seguinte, o dia estava cinza. As flores já não tinham mais perfume, os pássaros já não cantaram mais e aquele delicioso cheiro do café da manhã havia perdido o sabor. Saiu pela rua tentando ver alguém. Ninguém. Ele estava só. Voltou para sua casa desesperado, com um nó na garganta que insistia em fazer companhia para um lágrima morna e salgada que escorria pelo seu rosto. Entrou em seu quarto, fechou a porta e encostou-se na mesma. Assim como fazem os artistas de novela, na esperança de que aquele movimento de ir escorregando lentamente até o chão, fizesse a dor desaparecer. Era uma sensação amedrontadora, vazia e dolorosa.

Marcos perdeu-se no tempo e espaço, perdeu o controle total da sua pouca sanidade que lhe restava. Fechou-se em seu quarto e em seu mundo vazio, um mundo surreal inundando pelas suas lágrimas que traziam consigo caos e dor. Passou algumas semanas sem sair de casa. Sons ensurdecedores na sua cabeça, mãos e corpo trêmulos e aquela dor que invadia o seu peito. A solidão estava consumindo, sem nenhuma piedade, a cor, o cheiro e o sabor dos seus - outrora maravilhosos - dias.

O tempo não passava para ele como passava para o resto do mundo. Em uma certa noite, depois de alguns meses agonizando-se em seus pensamentos carregados de angustia e remorso, resolveu sair de casa e dar uma volta por aquelas ruas vazias. Ruas vazias, frias e assustadoramente melancólicas. Não se sabe quanto tempo e nem por onde ele andou. A névoa que invadia aquele meio urbano combinado com a umidade daquela noite de inicio de inverno, completava a sua sina de andarilho solitário. Os segundos, agora, eram sentidos pelo seu corpo em eternidades. 

Ao dobrar a esquina de um bairro, um bairro daqueles que nunca havia passado por lá, ouviu, depois de algumas eternidades do vazio ensurdecedor que era o seu silêncio, uma voz recitando bem baixinho:

"Ele gostava de voar,
Ele gostava de mergulhar no ar.
Ele adorava tudo isso,
Quando ele ainda estava aqui.

"Um dia", disse o menino,
"Eu vou morar junto ás nuvens,
E voar todos os dias.
E apenas ser livre. "

E agora ele faz,
Com o Sol ou com a Lua.
Ele sempre vai voar.
Pois o menino está perdido - o menino está morto."

O rapaz paralisou, esqueceu-se por alguns momentos do seu silêncio ensurdecedor e prestou atenção naquela voz no intuito de entender o que estava acontecendo ali. O gato o avistou, fixou seus olhos amarelos flamejantes em sua direção. Subiu em cima do muro e andando para lá e para cá, como quem procura alguma coisa, continuou:

"Não precisarei sentir. Pelo menos não os sentimentos humanos. 
Estes são tão ruins, carregados de crueldades e angústias. 
Os vejo todos os dias de suas vidas destruindo-se aos pouquinhos, passivamente. 
Eu não suportaria tanta dor e sofrimento que causam a si mesmos. 
Como podem ainda ter forças para erguer a cabeça todos os dias pela manhã? 
É tanta agonia, é tanta ansiedade e palavras destrutivas que se alimentam de suas almas e corpos. 
Oh! Bastet, sinto calafrios na espinha só de pensar sobre isso. 
Eu, ainda que não seja, prefiro ser chamado de animal . 
Um ser irracional, livre e feliz."

Marcos aproximou-se devagar. Sentia uma mistura de medo e êxtase invadindo-lhe o corpo. Aquilo era impossível. Ele devia estar no auge da sua insanidade mental.  Não, realmente não podia ser verdade o que seus olhos estavam lhe mostrando. Não obstante, era. Aquilo era um gato preto - negro como a noite, ou como os seus últimos dias de melancolia - que olhava em sua direção. Um gato preto falante, recitando versos em cima de um muro cinza. Um muro tão cinza e velho, quanto as nuvens que o perseguia nos seus últimos dias de vida.

Um barulho qualquer na rua, fez Marcos acordar assustado. Foi só um sonho. Novamente aquele sonho. Seu corpo estava cansado, no entanto sentia uma sensação de paz na sua alma, mesmo com a boca amarga. Um tranquilo mal estar, poderia dizer. Virou-se na cama e tentou se localizar. Abriu os olhos assustado. O coração batia acelerado, sentiu um suor frio sem febre no corpo. Tentou acalmar-se, pois só podia estar delirando. Bem ao lado da sua cama, sentado no tapete velho - um tapete que havia ganho da sua mãe - estava um gato preto. Tão preto como a noite, com olhos tão amarelos que pareciam dois girassóis em chamas, fixando-o tão violentamente que paralisava o rapaz até a alma. O gato calmamente saltou sobre sua cama, aconchegou-se em suas cobertas, ronronou e dormiu. Então, Marcos soube naquele momento que seriam grandes amigos e que ambos teriam boas histórias pra viver juntos. Fechou os olhos e adormeceu novamente.

2 comentários:

  1. A vida é cheia destes paradoxos indecifráveis e inevitáveis mas, se aprendemos a assumir o controle dela, absorveremos sempre este paradoxo e entenderemos que são eles que dão sentido à ela.

    Muito forte mas lírico ao mesmo tempo.

    Beijão

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    1. Beijão. Gratidão pelas suas palavras, estou sempre de olho em ti. <3

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